A ciência do crossfit é o Dossiê Superinteressante de setembro de 2018 e nós fizemos a direção de arte e a diagramação de todas as matérias que compõem a revista.
Nosso primeiro contato profissional com a Super foi durante o período em que integrei a equipe de arte, experiência que relatei aqui anteriormente. Algum tempo depois, o Fabrício Miranda, diretor de arte da revista na época, nos convidou para desenvolver o projeto gráfico e a direção de arte de uma das edições especiais da Super, os Dossiês, que saem todo mês nas bancas como uma publicação paralela à revista mãe.
Os Dossiês seguem o projeto padrão da Super em termos de formato, tipografia de texto, legibilidade, diagrama de margens etc. mas devem ter personalidade própria.
O trabalho era aparentemente simples: ficar em contato com a equipe de texto da publicação, cujo tema do mês era o CrossFit; interpretar as matérias graficamente; e pautar as possíveis ilustrações que julgássemos adequadas para que a revista ficasse no nível Superinteressante. Ou seja, bem alto.
Nossa decisão foi investir em um projeto gráfico contundente, usando bastante os diversos recursos da boa família tipográfica Favorit, da Dinamo — principalmente da Favorit Lining, sua versão nativamente sublinhada — e se apropriar da linguagem do lowpoly, tipo de ilustração que interpreta formas variadas como se fossem poliedros de baixa resolução, facetando propositalmente as superfícies e trazendo um clima meio tecnológico, meio construtivo.
Consideramos que esse clima era coerente tanto com a ideia do CrossFit, uma prática que molda rapidamente os corpos dos praticantes, quanto com a proposta da publicação, que é analisar cientificamente essa forma de se exercitar.
A revista é dividida em 3 partes: Por Dentro da Tribo, Mergulhando de Cabeça e Muito Além do Suor.
Para o “abre” de cada uma dessas partes, isto é, para as duplas que anunciam o início desses blocos de matérias, tentamos apresentar logo de cara alguns dos recursos principais do projeto gráfico: as ilustrações lowpolys; o conceito de transformação na ilustração que, na dobra da dupla, converte linhas em cheios; a Favorit e a GT Sectra, principais tipografias utilizadas no projeto gráfico; e as cores que organizam a revista como um todo — na primeira parte as matérias tendem ao vermelho, na segunda ao azul, e na terceira ao verde.
A primeira matéria da revista é uma reportagem sobre o surgimento e a ascensão do CrossFit.
Como o crescimento do número de boxes — assim são chamadas as academias credenciadas de CrossFit ao redor do mundo — é o principal dado dessa história, decidimos usar o próprio gráfico desse crescimento como ilustração da matéria.
Assim, uma grande mancha avermelhada vai tomando conta das páginas no decorrer do artigo ilustrando o crescimento do número de boxes ano a ano, e às vezes são pontuados círculos pretos acompanhados de uma breve legenda contando o que de importante aconteceu naquele ano específico.
CrossFit Games é a competição oficial dessa forma de fazer exercícios pelo mundo e a matéria “A olimpíada do CrossFit” conta mais ou menos como funciona isso e quais foram os últimos vencedores dessa parada.
Aqui, os desenhos do Leandro Robles da Pingado ilustram três estágios importantes da estrutura da competição: o envio de um vídeo do atleta malhando; uma pequena competição regional e, por fim, os Games em si, com plateia e tudo.
O traço da trinca de ilustrações em primeira pessoa também busca mostrar essa evolução, indo da primeira com apenas uma cor, na segunda ganhando duas cores e, na terceira, adquirindo contorno.
A diagramação da matéria é simples, com colunas verticais preenchendo as páginas e apresentando dois quadros, um que explica as etapas do torneio e outro com quem já ganhou o troféu nas principais categorias.
Aqui aparece pela primeira vez na revista uma massa de texto que não compõe uma história única, mas sim pequenas descrições de assuntos específicos, nesse caso apresentadas em forma de perguntas e respostas. Esse tipo de material gráfico nós costumamos chamar de “seção”, em contraposição à tradicional “matéria”.
Na seção “Por trás dos tabus” pautamos o nosso amigo e ilustrador Alexandre Sato para que ele fizesse três imagens com o estilo bem marcado para ilustrar algumas perguntas, e as coordenamos com fotos de cor editadas, além de um grande mapa pontuando em quais países do mundo mais se pratica o tal CrossFit.
Essa é a última entrada da primeira parte da revista e aqui tentamos diminuir visivelmente o uso de tons avermelhados na página, como se estivéssemos saindo de um clima para entrar em outro, no caso, a parte dois, azul.
Essa é a primeira matéria da segunda parte e buscamos fazer com que essa mudança ficasse bem visível, seja no estilo das ilustrações, seja na disposição do texto na página, seja na cor predominante, claro.
“Este é seu corpo em ação” conta, após uma breve introdução, o percurso completo de um treino de CrossFit em 6 passos. Na última dupla, faz alguns comentários sobre três áreas consideradas importantes pelo autor — a saber: a mente, o coração e os músculos e as articulações.
A intenção gráfica aqui foi misturar a ideia de história em quadrinhos com a tentativa de representar espacialmente uma academia através do recurso da perspectiva isométrica, que dá a sensação de infinitude e de simultaneidade das ações, pois nela todos os bonequinhos estão malhando num mesmo plano e, por isso mesmo, ao mesmo tempo.
Os desenhos individuais foram baixados via iStock, com o crédito pro estúdio singapurense Macrovector, customizados um a um e montados por nós na página para que apresentassem unidade e harmonia entre si, dado que, inicialmente, eles possuíam estilos e acabamentos bem diferentes entre si.
Basicamente, o que fizemos foi eliminar quaisquer representações de sombras internas e externas que eles continham, deixando eles mais flat, e colocamos em preto e branco as roupas das figuras.
Um ponto interessante desse processo foi a busca em apresentar diversidade entre os atletas ilustrados. A cor da pele e a estatura das figuras foram bastante trabalhados por nós na tentativa de representar que não existe padrão para idade, altura e nem cor de pele do praticante de CrossFit. Ou pelo menos não deveria existir.
O fato é que quase a totalidade das imagens que baixamos apresentava uma pessoa branca de cabelos castanhos ou loiros. Ao explorar as possibilidades, conseguimos, de forma muito fácil, representar pessoas negras, asiáticas e mesmo brancas de diferentes tonalidades de pele que não são muito comuns, ainda mais em ilustrações, digamos, “padrão” como costumam ser essas de bancos de imagens.
Também conseguimos trabalhar com a ideia de diferentes faixas etárias simplesmente trocando a cor do cabelo dos bonequinhos para cinzas grisalhos ou simplesmente eliminando por completo o cabelo. Careca também malha.
Essa matéria busca apresentar os principais exercícios do CrossFit usando bem as ilustrações do Guilherme Henrique.
Seguindo a ideia da cor azul predominar nessa segunda parte da revista, aqui a decisão foi utilizar apenas três cores — branco da página, preto 100% e azul ciano — e explorar as possibilidades de acabamentos que as ilustrações poderiam ter ao variar o “fundo” dessas pessoinhas praticando os exercícios apresentados.
A bidimensionalidade dessa matéria faz um contraponto à espacialidade da “Este é o seu corpo em ação” e, ao mesmo tempo, reforça a passagem de tempo, importante aqui para apresentar a ideia de que cada posição é um estágio do exercício, o típico “primeiro isso, depois aquilo”.
Nessa reportagem sobre lesões, a intenção foi se afastar do campo da ilustração vetorial, já usado nas duas matérias anteriores. Ao mesmo tempo, buscou-se trazer a ideia de algo real, fazendo uso do recurso da fotografia.
Aqui usamos fotomontagens do Alexandre Sato com um certo glitch, isto é, uma espécie de erro apresentado pelas máquinas, para ilustrar os problemas no corpo que a prática do CrossFit pode trazer.
Nesta seção, composta por apenas uma dupla de páginas, procuramos trazer uma estética bem diferente do que já havíamos feito até então, na intenção de simbolizar uma espécie de “hora de recreio”, o que nos pareceu apropriado pelo assunto da seção ser justamente a alimentação.
Aqui, trechos de textos são apresentados com larguras de coluna variadas — para que todos assumissem uma mesma altura na página — sobre uma textura com os alimentos apropriados para a prática do CrossFit que o texto aponta: frutas, carboidratos, proteínas animais e suplementos alimentares.
Essa matéria é um relato do repórter Bruno Romano contando como foram dois meses praticando CrossFit pela primeira vez.
Por conta do tom pessoal da matéria, aqui consideramos legal tentar trazer a ideia de uma pessoa específica nas ilustrações e, também, a mesma representação de transformação dos abres, ou seja, a conversão das figuras compostas por traços em imagens de áreas de cores.
No entanto, como seria complicado marcar uma sessão de fotos com o próprio repórter — para que daí o ilustrador da matéria, Leandro Robles, usasse as fotografias como base para as ilustrações — acabamos utilizando imagens de um mesmo ensaio compradas no banco de imagens iStock.
A diagramação da matéria é bem simples e tanto as ilustrações quanto o texto entram sobre o fundo branco do próprio papel. Por algum motivo, essa simplicidade nos remeteu ao universo dos diários, dos jornais, e também foi interessante explorar uma linguagem mais minimalista em contraponto à estética mais carregada que utilizamos no resto da edição.
A partir do título da reportagem, que discute a relação dos praticantes com o próprio CrossFit, o conceito que nos pareceu mais interessante a ser explorado foi a ideia de “culto”. Assim, o projeto gráfico da matéria ilustra uma espécie de via crucis de alguns exercícios típicos do CrossFit, novamente com a limitação de serem fotos de um ensaio já realizado, compradas também no iStock e produzidas pelo AlexD75.
A partir de efeitos de sobreposição, cada página é ilustrada por uma sequência de fotos de um mesmo exercício, como numa imagem resultado de múltiplas exposições registrando os estágios de cada atividade específica.
Como essa matéria faz parte da terceira parte da revista, a cor predominante é o verde, que domina as páginas e serve como duotone, isto é, cor complementar para os retratos dos praticantes de CrossFit consultados para a matéria.
Outro elemento próprio do design desta reportagem é o uso do losango no abre, na capitular e emulado nos ângulos superiores e inferiores dos quadros brancos, em que aparecem os depoimentos dos atletas.
Com um expediente semelhante à matéria anterior, aqui novamente escolhemos um ensaio fotográfico disponível no iStock — dessa vez produzido pelo estúdio dinamarquês Jacob Lund — porém decidimos por dar um tratamento cromático diferente às imagens.
A história que quisemos contar foi a de duas amigas indo treinar para ilustrar a ideia de um guia abordando 5 pontos relevantes para a prática do CrossFit. Assim, a primeira imagem, que apresenta as moças chegando no estúdio, possui um filtro duotone de verde claro e rosa, enquanto o restante das fotografias aparece com um tratamento em que o mesmo rosa substitui as partes claras das imagens enquanto o verde escuro são os “pretos”, dando mais legibilidade ao conteúdo das fotos.
Cada entrada do guia aparece numa espécie de cartela branca sobre as fotografias de página inteira, com o número da dica dentro de um círculo e sob o texto.
Finalmente, a última seção apresenta 12 fatos interessantes sobre o universo do CrossFit.
O projeto gráfico tira partido do sublinhado da tipografia utilizada por toda a revista e constrói um percurso conectando essa dúzia de informações independentes.
As ilustrações são um mapa-múndi indicando os locais mais inusitados em que podem ser encontradas academias de CrossFit e fotos recortadas sobre o fundo cinza das duas duplas que compõem a seção.
Lidar com os conceitos de diversidade e unidade que compõem naturalmente a ideia de um periódico nos apresentou questões que até então haviam sido pouco exploradas por nós enquanto estúdio simplesmente pelo fato de que nunca havíamos feito uma revista inteira.
Esses conceitos frequentam o projeto gráfico de uma publicação como essa tanto externamente — como essa edição faz parte de uma coleção de dossiês ao mesmo tempo que marca que essa é diferente de todas as outras? — quanto internamente —como essa matéria se parece esteticamente com as outras ao mesmo tempo em que é única e apresenta características próprias?
A questão da unidade gráfica interna da revista foi um processo caro pra gente. Inicialmente, cada matéria tinha personalidade demais e coletividade de menos. Com o desenrolar da coisa, fomos percebendo traços que as poderiam unir — o tratamento tipográfico do título semelhante entre as matérias, a capitular em caixa alta estendida dentro de uma forma geométrica — e, com o toque do Fabrício Miranda, a solução das cores para marcar bem cada parte.
O resultado nos agrada bastante: uma estética que, na nossa visão, conversa com o dinamismo do universo da malhação; o uso criativo de uma mesma família tipográfica para todos os títulos da revista; ilustrações e fotos que convivem de forma complementar e harmoniosa por todo o projeto; e a sensação de ter conseguido pensar, aplicar e coordenar toda a parte visual de uma publicação impressa que chegou nas bancas de todo o Brasil.
Não é pouca coisa, não. Ufa.
F I C H A T É C N I C A